domingo, 12 de junho de 2016

O AMOR VEIO PRIMEIRO

No livro Quatro Letras estão as cartas que escrevi para o Igor desde que descobri que estava gravida até janeiro de 2016 (quando o livro foi publicado). O blog do grupo Do Luto à Luta: Apoio à Perda Gestacional e Neonatal (https://dolutoalutaapoioaperdagestacional.wordpress.com/…/…/) compartilhou a primeira carta que escrevi para ele depois da conclusão do livro (com a linda ilustração da Kim Hodge-Böm).
“Querido filho, a sua passagem tão rápida pela Terra me trouxe muitas reflexões. A vontade de ter sua companhia e estar privada de desfrutá-la me fez questionar o que é a realidade. Embora não tenhamos protagonizado os episódios que planejei vivermos juntos, o carinho que experimentei durante a gravidez deu origem a uma história enorme, imaginada na minha mente, para nós dois. E ela com certeza teria se concretizado, se tivéssemos recebido a chance de transportá-la do plano mental para o plano material.
Quando seu corpo faleceu, antes que estes episódios planejados pudessem sobrevir, constatei que a força do afeto que estava inserido neles não se desfez. Assim, percebi que a nossa história não era uma mentira, só porque não teve tempo de acontecer. Descobri, também, que cada vez que nos abraçássemos ou brincássemos, tais fatos seriam apenas o efeito de uma causa precedente. E a verdade não se encontra nas consequências, mas na fonte geradora dos resultados que enxergamos com os olhos.
Logo, não eram os instantes felizes que ainda vinham pela frente os responsáveis por fazer nascer o nosso vínculo. Muito pelo contrário. O nosso vínculo, que já existe e já é real, é que daria nascimento aos instantes felizes que nos aguardavam no futuro, os quais só poderiam ocorrer porque o amor veio primeiro. Se a verdade se encontra na causa e não no efeito, e se os abraços e as brincadeiras entre duas pessoas são a consequência de um sentimento prévio que os produz, só posso concluir então que o motivo para as pessoas estarem unidas é o fato de se amarem, sem fazer diferença quantas vezes o propósito interno conseguiu se manifestar externamente.
Da mesma forma que um pianista recebe este título por possuir os conhecimentos que o habilitam a imprimir no piano as músicas que deseja tocar, uma mãe recebe este título por possuir os sentimentos que a habilitam a imprimir no filho os valores que deseja lhe entregar. A falta do piano não retira do pianista a sua função, pois ele tocará músicas em qualquer objeto que esteja ao seu alcance e tenha as características do instrumento que ele domina. Igualmente, a falta da pessoa que amamos não retira de nós a função de lhe entregar os valores que temos reservados para ela, pois quando o corpo se vai, ainda está ao nosso alcance o espírito do ser amado.
É por isso que deixar de ser sua mãe nunca foi uma alternativa para mim. Independente da distância física que nos separe, continuaremos unidos porque nossa verdadeira história é a que vivemos dentro da alma. A outra é só uma projeção.
Mil beijinhos da mamãe,
Flavia Camargo.
Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2016”

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